quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Sósia — conto de Gabriel Sanchez

Mark recostou-se em sua cadeira presidencial em seu escritório, e lançou um olhar para a geladeira, pensando em atacá-la, mas o cheiro que sentiu da cozinha dizia que ele deveria esperar apenas mais um pouco. A cadeira presidencial era um luxo que Mark se concedeu; inflava seu ego e desinflava as dores lombares. 

— Jane, ‘mor, o almoço tá saindo? — disse Mark.

— Só mais um pouco. — O que confirmava o que Mark supusera. Mark sentia que trabalhava com mais eficiência quando Jane ficava em casa por alguma folga. A multinacional a qual Jane prestava serviços trazia malefícios como as horas extras inesperadas e benefícios com as folgas para compensação.

— Eu lavo a louça, mor, — disse Mark.

— Nah, de boa.

— Tira uma soneca; você preparou o almoço…

— Já disse que de boa, caralho, puta que pariu! — Jane tossiu logo em seguida. Por um instante, Mark arregalou os olhos; teve certeza que, numa fração de segundos, a voz dela soou sinistra, como se uma voz mais grossa, quase inaudível, estivesse sobreposta à voz comum de Jane; mas ignorou.

Quando Mark observou o tom alaranjado da luz que adentrava seu escritório, notou que mergulhara em seus projetos por tempo suficiente. Espreguiçou-se na cadeira, o que passou a sensação de choque por sua lombar. Mark passava tempo demais sentado. Levantou-se e caminhou até a sala.

Mark e Jean resolveram assistir séries deitados no quarto. O quarto propiciava a possibilidade de apenas cederem ao peso das pálpebras se preciso; e também a desculpa para brincadeiras mais sérias. Eles estavam tão distraídos que se entreolharam confusos quando ouviram um barulho metálico vindo da cozinha. O som da porta se fechando confirmou suas suspeitas.

— Que porra é essa… — A tensão inesperada enfraqueceu sua laringe, e Mark percebeu que sua voz saiu duvidosa. Seus pelos se ouriçaram pela adrenalina; Mark receou, mas caminhou até a porta do quarto para ouvir melhor.

— Mor, cheguei! Hoje tava foda; mais um daqueles dias. Mor? — a pessoa disse da cozinha. Uma voz familiar: a voz de Jean.

Mark tentou responder, mas a voz falhou. A confusão era tanta que ficou imóvel por um tempo; não mais que alguns segundos. Então, ouviu um chiado leve e rouco atrás de si; não, era uma risada. Sentiu uma dor como uma punção em seu braço direito pelo choque. E foi o máximo que a mente sã de Mark pôde registrar. Uma dor lancinante o atingiu por um segundo, e Mark começou a babar com os olhos arregalados. Seu corpo perdeu funções básicas, e outras funções se desregularam. Antes de ceder à escuridão, Mark ouviu os gritos de Jean vindos da cozinha. 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Pisadeira — conto de Gabriel Sanchez

Há dias que ele não conseguia dormir direito. O peso do cansaço acumulado de noites mal dormidas agora era evidente no rosto de Marcos no formato de olheiras fundas. O problema era como consertar essa situação. Entenda, Marcos estava bem; o problema era sua namorada.

Gabriela foi morar com ele faz cinco dias. Cinco noites mal dormidas. Para Marcos. Sua namorada nem suspeita. Para ela, as noites são comuns. 

Mas como Marcos pode dormir com aquela visão tenebrosa ao seu lado? Gabriela com as costas arqueadas, como se um gancho estivesse a puxando para o alto. Sua boca aberta com um grito inaudível. Seus olhos arregalados.

E pousada sobre Gabriela, a criatura. Uma porra de uma jovem demoníaca com o formato muito similar ao de uma gárgula.

Marcos não dormiu nas primeiras duas noites, recostado no canto do quarto, paralisado. Nas últimas noites, inventou um problema para dormir na sala. Mas toda madrugada, às três horas, ele abre a porta do quarto de fininho e lá está toda aquela cena absurda.

— Pisadeira. Uma pisadeira está perturbando sua namorada. — disse a cartomante. Ele não relevou o papo do padre de que ela precisava de “mais Deus”.

Marcos não está preparado. O método para poder matar uma merda dessas é ridículo. Você precisa dormir ao lado da pessoa perturbada e acordar, sem auxílio, exatamente às três horas, desferindo imediatamente o golpe com a adaga consagrada. Falhar pode ser fatal.

Como que dorme com uma porra dessas na cabeça!? Fato é que Marcos dormiu, não por vontade própria. Oh, não. Ao acordar às três, sua mente rapidamente ativou seu braço para acertar a criatura. Mas seu braço estava pendurado, suas costas arqueadas. Seu olhar fixo na pisadeira sobre seu peito, sorrindo saciada. Ao seu lado, sua namorada acariciava o corpo de Marcos, com uma adaga em mãos. 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Torrencial — conto de Gabriel Sanchez

Não houve o que pensar no início. Fred sentiu a estação das chuvas. Quando a chuva durou uma semana, Fred deu de ombros. Foi na metade da segunda semana que Fred começou a se preocupar.

Era uma quinta-feira e a chuva já durava 11 dias. Fred, que jamais se classificaria como solitário, notou que tudo em sua casa possuía uma fina camada de gotículas de água. O mundo ao seu redor estava úmido e cinza.

Quando Fred acordou no sábado e percebeu que estava chovendo, um leve desespero o dominou por alguns instantes. Seria este o Dilúvio novamente? Nah, segundo O Livro, o mundo acabaria em fogo. Será que só eu percebo esta chuva?

A existência estava sufocante por causa da umidade do ar. Tudo tinha uma sensação pesada e sem vida. Estática. Mas a chuva continuava e dominava a mente de Fred. Não ter com quem compartilhar essa situação tornava tudo mais difícil. Ninguém entenderia a preocupação de Fred com uma mera chuva. Apenas água. Só se secar.

Fred já não tomava mais banho. Pra quê se eu estou sempre úmido mesmo!? Suas roupas; toda a casa estava úmida. O mundo todo.

Aos poucos, tudo foi definhando. A chuva, não tempestuosa, caia firme. Fred passava os dias apenas escutando a chuva. Sem perspectiva. Sem vontade de existir nesse mundo cinza e molhado.

A água subia cada vez mais. O desespero começou a tomar conta de Fred. Estaria o mundo virando um gigantesco oceano? Fred sentiu que estava sozinho. Como sempre. Não havia saída. Era inevitável.

Ao fim, Fred não lutou muito. Os espasmos naturais de um corpo autoconsciente o suficiente para tentar se salvar ocorreram, mas não foram suficientes. Fred talvez chorou, mas as lágrimas confundiram-se com a água que englobou toda sua realidade.


[...]


O dia amanhece calmo hoje, mas os habitantes do bairro Vale do Sol acordam com uma trajédia terrível: Fred Gates, de 28 anos, foi encontrado sem vida em sua banheira com sinais de afogamento. A perícia afirma que ele está morto há pelo menos 3 dias. O corpo de Fred foi encontrado por uma moradora do prédio que ele mora que relatou um cheiro estranho vindo do apartamento de Fred. A polícia descarta assassinato e acredita que trata-se de um caso de suicídio por overdose medicamentosa que culminou no afogamento acidental de Fred quando ele desmaiou por causa do excesso de remédios. Ao lado da banheira haviam vários frascos de remédio abertos e uma nota curta. A polícia não deu detalhes da nota. Fred não deixa família e não possuia familiares próximos. Não conseguimos contatar nenhum amigo de Fred para comentar sobre a tragédia. Agora, em Previsão do Tempo, a semana segue ensolarada como tem sido nos últimos dias...

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O Paciente Zero — conto de Gabriel Sanchez

Quando o vírus apareceu, as pessoas não se importaram tanto. Acharam que seria um caso isolado. Havia empatia hipócrita no ar; _não sairá daquele continente_. As pessoas questionavam os fatos o tempo todo. O preço do progresso tecnológico. Informação distorcida. Conversas sobre anarquia. Racismo. Xenofobia. As coisas começaram a tomar um rumo sombrio quando os primeiros casos foram relatados em outros continentes.

Estudos mostraram que a transmissão ocorre através do contato com saliva ou sangue infectado. Os sintomas iniciais são os sintomas comuns de uma infecção forte. Febre alta, dores no corpo. Os estágios finais incluem demência, possíveis ataques de ansiedade e raiva. Morte em duas semanas.

Grandes piras queimavam incontáveis ​​corpos ao ar livre. Os toques de recolher tornaram-se bloqueios. As pessoas evitavam sair às ruas, e as que o faziam eram muitas vezes violentas e saqueadoras. As pessoas que estocaram suprimentos rapidamente tiveram que se aventurar nas ruas para reabastecer. Gradualmente, a peregrinação tornou-se habitual.

Phillipe viu sua grande sorte quando ouviu a mensagem no rádio. "Centro de pesquisa procura voluntários para estudar uma vacina." Phillipe sabia que sua contribuição seria vital. Sua certeza de que seu organismo estava imune veio de um evento em que sua infecção parecia inevitável. Phillipe queria ajudar o mundo. Phillipe queria que seu sangue fosse estudado para que uma vacina fosse uma realidade.

Mas Phillipe estava errado.

O que começou com questionários e estudos leves tornou-se uma tortura. Os pacientes morreram quando homens de jaleco testaram diferentes patógenos. Phillipe percebeu tarde demais que os cientistas não queriam uma cura; eles só queriam controlar o vírus. Controlar a população.

Esse foi o último pensamento lúcido de Phillipe que, amarrado a uma maca, foi injetado com uma versão agressiva do vírus. Nem mesmo seu corpo poderia conter a infecção. Lágrimas escorriam por seu rosto inexpressivo enquanto seus pensamentos nublavam ao ponto em que Phillipe não tinha mais discernimento.

Apenas um sentimento. Um sentimento insaciável. Uma vontade que, para um ser humano, parece surreal ou doentia. Fome. Fome de carne. Fome de carne humana.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Felizes para sempre — conto de Gabriel Sanchez

A princípio, Jack tentou evitar esses pensamentos. *Ímpio*. Mas, eventualmente, Jack sucumbiu a eles. Ter uma arma em casa faz muito sentido agora.

Não houve uma noite específica. Jack apenas esperou pelo sinal. Sua família talvez tenha notado algo estranho, mas um par de *nada, querida, eu estou bem* foi o suficiente para descartar qualquer suspeita.

O sinal veio em uma noite normal. Uma noite muito tranquila. Jack saiu da cama; preparou a arma. *Faça rápido. Indolor.* *Bang!* Um na cabeça. Sua outra filha acordou perdida. Ela só teve tempo suficiente para se perguntar. *Bang!*

— Jack! Onde você está!? — disse Ana.

A esposa de Jack não quis acreditar nisso a princípio. Quando ela o viu com a arma na mão, ela teve tempo suficiente para gritar. *Bang!*

— Eu os matei! — disse Jack. Ele começou a se repetir em lágrimas com uma risada histérica. Pessoas de branco invadiram o quarto acolchoado de Jack. Seringas à mão. Ele os empurrou, mas durante seus gritos, eles conseguiram drogá-lo.



— Não há outro jeito, senhora. Tentamos tudo o que podíamos. Eu sei, eu sei. O procedimento é indolor, senhora. Confie em mim, depois do procedimento, Jack ficará feliz para sempre. Ele está marcado para amanhã.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Workaholic — conto de Gabriel Sanchez

Mais meia hora e acabou. Pensei em uma típica sexta-feira. O pensamento de apenas mais um trabalhador de classe baixa a média.

Eu me preparei para sair. O mesmo para as pessoas que trabalham comigo em uma mesa grande. O tão esperado fim de semana. Está lá todas as semanas, mas sempre ansiamos por ele.

Tempo suficiente para mal respirar o ar que chamamos de puro. As reuniões foram uma loucura naquela segunda-feira. Fechei minha agenda de propósito para evitar mais reuniões. O desempenho depende da pró-atividade.

Mais um fim de semana. E outro. E mais um. Acabei notando algo errado quando vi meus dedos enquanto digitava no meu escritório. Uma marca do que parecia ser um anel. Um anel de casamento?

O casamento parecia distante para mim. Como eu poderia ter tempo para o casamento com tanto trabalho? Um CEO precisa de foco. Reunião agora; penso nisso mais tarde.

Eu nem vi minha vida passar. O trabalho tomou conta de mim, nem vi meu casamento desmoronar; na verdade, nem vi meu casamento. Houve um casamento?

Tentei olhar para fora. Ah, bem, não existe “fora”, apenas uma janela falsa com uma bela foto para evitar distrações.

– Remarque todas as reuniões para segunda-feira. Está tudo bem, sim, não se preocupe.

Vou tentar me cuidar mais. Saí do prédio.

Reorganizar as reuniões de sexta-feira pareceu idiota quando vi a agenda de hoje, mas pelo menos aproveitei o fim de semana. Eu realmente não me lembro. Não me lembro muito fora do trabalho. Não me lembro de nada além do trabalho.

Tentei manter a calma enquanto caminhava para a saída. Eu vi algumas pessoas olhando.

Terça-feira estava me matando. Sair cedo ontem acumulou muitas coisas. Espera. Eu saí ontem e o que eu fiz? Desesperado, corri para a saída. Todos me olharam de pé.

O porteiro estava sorrindo. Um sorriso estranho.

– Saindo cedo de novo, senhor? – ele disse, – você parece estar procurando por algo.

Ele não abriu a porta principal. Ordenei-lhe que abrisse o portão. Seu sorriso torto me assustou.

– Sua vida está aqui.

A realidade me levou como um porrete na cabeça. Memórias distorcidas de uma vida desperdiçada me dedicando ao trabalho. Os contatos que acumulei à medida que subi na empresa e as pessoas que sumiram porque eu estava sempre indisponível. Minha esposa, minha filha, meus verdadeiros amigos.

Minha morte por ataque cardíaco. Na minha cadeira de escritório, é claro. Um destino inevitável para alguém cujo estresse era uma constante.

Eu estava morto. Eu morri de tanto trabalhar.

O medo absoluto me dominou com a última linha que me lembro do porteiro. – Nada mais justo do que a eternidade no ambiente que você mais ama, senhor.


(...)


Mais meia hora e acabou. Pensei em uma típica sexta-feira. Mais meia hora para eu curtir um merecido fim de semana para um trabalhador de classe baixa e média. O dia voou.

Mas o porteiro estava estranho hoje.

– Bem-vindo mais uma vez – disse ele com um sorriso sombrio.

Sósia — conto de Gabriel Sanchez

Mark recostou-se em sua cadeira presidencial em seu escritório, e lançou um olhar para a geladeira, pensando em atacá-la, mas o cheiro que...